Perspetivar o futuro da energia. Ao refletir sobre este desafio pensei de imediato que projetar as próximas décadas da evolução do setor energético é algo que se subdivide em duas dimensões: uma delas remete-nos para o que idealizamos em resposta às necessidades e problemas que sabemos prementes; outra, mais pragmática, é a dimensão do possível, tendo em conta os vários constrangimentos existentes. Esta segunda dimensão será sempre afetada por outro fator: a incerteza, algo a que a pandemia do COVID-19 nos tem habituado.
São vários os fatores geradores de incerteza na equação do futuro da energia, mas aqui gostaria de destacar apenas um deles: a vontade e a criatividade humanas. De facto, um dos elementos que decerto influenciará tudo aquilo que será ou não possível nos próximos 20 anos é a forma como a sociedade (e os indivíduos, como partes deste todo) irão impelir a resposta a um conjunto crucial de desafios. Esta é uma questão imponderável, mas que tem forte impacto em todas as outras: no evoluir do conhecimento e tecnologia, no alavancar do investimento, na adaptação dos estilos de vida a um ritmo mais sustentável…
Tendo em conta esta imprevisibilidade, e reconhecendo acima de tudo as minhas próprias limitações enquanto “não especialista” na área da energia, decidi então dedicar as próximas palavras à primeira dimensão deste exercício: falar um pouco sobre o que eu gostaria de encontrar no ano 2040 no que à energia diz respeito.
Primeiramente, perante a situação de emergência climática que hoje enfrentamos, surge como incontornável que daqui a 20 anos estejamos perto de atingir um horizonte de produção energética 100% renovável. Há outros desafios importantes no que à energia concerne (a seu tempo iremos a eles), mas o imperativo da neutralidade carbónica é por ora o mais significativo. Caso sejamos incapazes de transitar rapidamente dos combustíveis fósseis – a principal causa antropogénica por trás das alterações climáticas – para as fontes de energia renovável, iremos assistir ao desencadear de um conjunto de mecanismos de feedback positivo com impactos transversais em todas as vertentes da vida em sociedade e do nosso quotidiano. O cenário depois disso é aquele que prefiro não ter de projetar. Assim, para atingirmos as metas de descarbonização é necessária evolução tecnológica (nomeadamente no que diz respeito a soluções de armazenamento, para assegurar a estabilidade de um sistema energético baseado em fontes limpas), mas também necessariamente assertividade política e investimento.
Apesar da transição dos combustíveis fósseis para as energias renováveis ser um passo essencial para a redução das emissões de gases com efeitos estufa, enganam-se os que julgam que o exercício é só este. É preciso igualmente reduzir a intensidade energética da nossa economia, pois mesmo continuando a aumentar a percentagem de integração de renováveis, se não reduzirmos o uso de energia não seremos capazes de realizar os progressos líquidos necessários à rápida descarbonização. Daqui resulta a importância fulcral da eficiência energética, um dos eixos centrais do trabalho da ADENE.
Mas a trama continua a adensar…Falamos de reduzir o consumo de energia, mas a procura de energia em termos globais tem vindo progressivamente a aumentar e continuará previsivelmente a aumentar durante os próximos 20 anos. Esta evolução surge como óbvia se considerarmos o crescimento da população e aumento da prosperidade a nível mundial, tanto mais se considerarmos o quanto a energia – notavelmente a elétrica – é importante para a maioria das tarefas do nosso quotidiano. Esta dependência da energia elétrica é característica de uma sociedade cada vez mais digitalizada, onde o uso da Internet e computadores exige necessariamente energia. E há ainda que considerar o facto de termos ainda um longo caminho a percorrer até 2040 no que diz respeito a proporcionar o acesso universal a energia limpa.
Rapidamente adicionamos mais um fator a esta teia: como podem as economias menos desenvolvidas ser alavancadas sem o acesso à energia necessária para integrarem de forma competitiva a economia digitalizada do futuro? Para uma significativa percentagem da população mundial a falta de acesso a eletricidade implica que a única fonte de energia para realizar pequenas atividades do quotidiano, como a confeção de alimentos, é a biomassa. Mais uma vez, os impactos deste facto são vários, começando nos efeitos para a saúde respiratória, nas dificuldades no acesso a todo o tipo de serviços e terminando nas perdas de produtividade associadas ao tempo despendido na obtenção de biomassa.
Ao falar desta forma sobre a falta de acesso a energia limpa em outras geografias, poderia parecer-nos que junto de nós a realidade da pobreza energética é já há muito distante. Mas as estatísticas para Portugal mostram o contrário: dados do Eurostat de 2018 colocar Portugal como o quinto país da União Europeia onde as pessoas têm menos condições económicas para manter as casas devidamente aquecidas1. Este facto ilustra mais um desafio a responder se pretendermos construir um verdadeiro “Futuro da Energia”: o da desigualdade. A verdade é que o acesso a energia abundante e suficiente para iluminar, aquecer e arrefecer as nossas casas é um privilégio – que é atualmente tomado demasiadas vezes como garantido.
Suplantar esta desigualdade passa também por desenvolver até 2040 um sistema energético menos centralizado e mais participado. O desenvolvimento das Comunidades de Energia Renovável pode ser uma via para o exercício de uma cidadania energética, permitindo que as pessoas sejam corresponsáveis pela produção e gestão da sua própria energia, com possibilidade de partilhar custos, mas também benefícios sociais e ambientais. Assim, ao invés de deixar o alcance das metas de redução de emissões apenas nas mãos de líderes distantes, cidadãos e empresas podem também tomar parte ativa no mercado energético.
A democratização da geração e acesso à energia limpa faz parte do trabalho para uma transição energética justa, sendo que existe ainda um outro elemento crucial. A transição irá acarretar mudanças no tecido económico que vão afetar muitos trabalhadores e comunidades. Assim, até 2040, estes trabalhadores devem ser capacitados e dotados de ferramentas para reintegrarem o mercado de trabalho e as suas comunidades apoiadas de forma a contribuírem também para a economia de baixo carbono. Tudo isto mostra como as políticas de transição energética dos próximos 20 anos não deverão esquecer uma importante dimensão de justiça social, pois o Futuro da Energia quando chegar, deve chegar para todos.
Chegada ao final, penso que se calhar a visão que ofereci foi menos “ideal” e mais “problemática” ou “problematizadora”. No entanto, o que julgo que fica claro é que os próximos 20 anos da Energia serão decisivos. Mas se formos bem-sucedidos em concretizar uma transição energética justa para um paradigma de energia limpa, acessível e fiável, alcançaremos grandes ganhos para o ambiente, a economia e, mais importante que tudo, para as pessoas. Mas atenção: o mais fácil é mesmo identificar os problemas, construir uma visão e definir metas. O verdadeiro desafio prende-se com a dimensão mais pragmática que referi na abertura deste artigo, isto é, passar das intenções à prática, implementando um plano eficaz, efetivo e comprometido. A ação é urgente, o futuro incerto e ainda há muito trabalho a fazer. Mas na minha visão o futuro da energia ainda pode ser revolucionário, se existir vontade.